Aldo Urbinati e Estúdio Tupi conectam a arquitetura à paixão pelos livros
Definir o conceito de arquitetura pode ser um exercício complexo. Dada a grandiosidade de uma disciplina que abarca tantas outras, uma boa estratégia pode ser recorrer à literatura. No Estúdio Tupi, liderado por Andrea Vosgueritchian e Aldo Urbinati, os livros têm um papel de destaque. São quase 8 mil volumes dispostos por dois longos corredores para formar uma biblioteca que passeia por várias épocas e áreas do conhecimento.
Em uma entrevista a Giner, Aldo Urbinati contou um pouco sobre o desenvolvimento da biblioteca, sua relação pessoal com os livros e a arquitetura como disciplina.
O livro é o órfão da realidade
O interesse de Aldo pela literatura vem de longa data. Ainda na infância, em Belém do Pará, ele frequentava livrarias e devorava obras com o apoio familiar. “Meu pai sempre foi um grande leitor, eu e meu irmão passeávamos na livraria aos finais de semana com ele. Foi-se criando uma cultura na minha casa, fui criando um apreço por isso. Quando vim para São Paulo para estudar, eu posso ter perpetuado esse hábito como uma memória da infância que eu não queria que tivesse ido embora”, conta o arquiteto.
A resposta mais poética se contrapõe a uma visão mais dura a respeito dos livros, que Aldo apresenta com muita desenvoltura. “O livro é o órfão da realidade. Eu gosto de livros porque eu não gosto de viver nada no mundo real. Quanto mais distante da vida real eu estiver, melhor”.
Aldo avança em sua definição do que seria uma biblioteca. “O livro é uma redoma que protege a gente do frio, da chuva, do calor. Protege também dos vivos, ou seja, os livros formam um cemitério, já que a maioria dos autores está morta e, mesmo os ainda vivos estão mortos porque, quando você abre e lê, aquela pessoa não está mais ali falando com você. Em uma biblioteca, você é órfão da realidade, totalmente protegido de qualquer perigo, todas as aventuras são vividas através da ficção. É uma resposta mais tétrica, mas é mais verdadeira.”, conclui Aldo.
O nascimento da biblioteca do Estúdio Tupi
Há muitos anos, Aldo Urbinati se refugia nos livros, como ele mesmo aponta em sua definição de literatura. À medida que a sua coleção ganhou corpo e dimensão, ele percebeu que era possível dar vida a uma biblioteca para consolidar todas aquelas obras e dar a elas um senso de organização.
“Foi um sonho que conseguimos concretizar. A compra dos livros já vinha sendo feita antes de termos o lugar físico para eles. Quando vi que estava colecionando certas edições e autores, pensei que poderia dar um pouco mais de volume para isso”, explica.
O número total de livros também foi um fator que contribuiu para a concretização do sonho. “Se dizia em Viena, no final do século XIX, que uma biblioteca deveria ter mais ou menos 8 mil livros. Quando chegamos perto desse número, você começa a entender a frase. É um tamanho de biblioteca em que as partes começam a falar entre si, ou seja, você tem camadas de citações dentro da própria biblioteca e passa a formar círculos de interesse”.
Aldo entende estar no caminho para que a biblioteca do Estúdio Tupi se torne robusta. “A biblioteca tem a dinâmica de círculos de interesse, com livros sobre arquitetura, história da arquitetura, história, filosofia, filosofia que se relaciona com a arquitetura moderna, história da arte, entre outras áreas”.
Em meio a milhares de livros, há alguns volumes raros, embora isso não seja uma prioridade de Aldo. “Existe certo fetiche de ter uma ou outra primeira edição, mas nunca tivemos assim uma inclinação a livros raríssimos e muito caros. A construção da biblioteca foi muito mais pela lógica dos círculos de interesse”, descreve o arquiteto. Ainda assim, ele reconhece que possui alguns volumes bem raros em sua coleção. “Às vezes aparecem oportunidades e um livro raro pode custar 10 reais. Um bom exemplo é ‘Joyce no Brasil’, uma publicação que traz a retrospectiva da celebração no Brasil do Bloomsday (data que homenageia o personagem Leopold Bloom, protagonista de Ulysses, de James Joyce)”, conta Aldo.
James Joyce pode contribuir para o estudo da arquitetura
A menção a James Joyce não acontece por acaso. O autor irlandês é um dos mais reconhecidos do século XX e tem sua obra estudada por milhares de pessoas em vários países. “Existe um material quase infinito de pesquisas, interpretações, livros, revistas, seminários, cursos, palestras, núcleos de leitura e até departamentos de universidades dedicados à obra do Joyce. No domínio da arte, não é comum ter esse grau de profundidade”, aponta Aldo.
Na biblioteca do Estúdio Tupi, existem muitos volumes de James Joyce e de autores dedicados a estudar a sua obra, mas Aldo afirma nunca ter lido um livro do autor de ponta a ponta. “Fiz um esforço gigante para não ler nada do Joyce, só leio o que falaram dele e algumas partes de seus livros. Me interessa saber como Ulysses ainda pode provocar um farto território para tanta gente trabalhar sobre aquilo. É um objeto artificial do modernismo, inscrito dentro da história do modernismo”, reflete.
Em grande medida, o estudo da arquitetura pode seguir um caminho parecido, na visão de Aldo Urbinati. “A arquitetura é uma disciplina dependente de outros elementos, ela não existe sozinha. A obra do Joyce tem muito dessa fragmentação na proposta estética. É uma forma de entender as metáforas, um caminho diferente de estudo. A observação dá um caminho para o entendimento da arquitetura. Se você perceber como aquilo foi feito e como os outros o estudam, está mais próximo da arquitetura do que se você estudar arquitetura de fato. Estudar arquitetura de fato é estudar aparatos e normativas técnicas”.
O desafio de conceituar a arquitetura
O fato de não existir sozinha é um ponto central na definição de arquitetura, de acordo com Aldo Urbinati. Ele reluta em conceituar a arquitetura, mas aponta um caminho por meio da sua reflexão.
“A palavra ‘janela’ pertence à arquitetura? A gente sabe que a janela veio antes da arquitetura, assim como a porta. Toda a linguagem da arquitetura é um empréstimo que fizemos de um aparato de linguagem que não era dela. Ou seja, a arquitetura não é uma construção de fundações sólidas, é um conjunto de fragmentos, um prédio mal construído, todo fragmentado. Nenhuma palavra que usamos para descrever um prédio pertence a ela, estão contaminadas de outras disciplinas, que não estão justapostas na arquitetura”.
Em relação ao futuro de uma disciplina tão difícil de definir, Aldo é categórico e reflexivo ao mesmo tempo: “A arquitetura já morreu há muito tempo, estamos vivendo o final do apocalipse, esticando os últimos capítulos. Não existe arquitetura na quarta dimensão, então não existe arquitetura do futuro. Parece pessimista, mas não é. A arquitetura é uma profissão que depende de empilhar tijolos, mas ela não vai morrer nunca porque vamos continuar empilhando tijolos em algum lugar”.
Ainda que o futuro da arquitetura seja incerto ou mesmo inexistente, o seu presente e o seu passado estão intimamente ligados a várias outras disciplinas, entre as quais a engenharia acústica. “A acústica é fatal para a arquitetura, já estava lá desde o dia em que a arquitetura nasceu. Sem a audição, você perde o entendimento dos espaços, ou seja, a acústica é um dos vínculos primordiais para definir a arquitetura como uma ciência humana e uma ciência do habitar, de estar dentro de um espaço”, aponta Aldo.
Estúdio Tupi carrega múltiplos significados em seu nome
Se a arquitetura é um conjunto de fragmentos, podemos dizer que o Estúdio Tupi traz em seu nome a união de vários elementos. A escolha inicialmente aconteceu por uma coincidência geográfica, já que o primeiro escritório ficava na Rua Tupi, no bairro do Pacaembu, em São Paulo. “Mantivemos a ideia inicial por sabermos que o nome carregava muitos elementos que interessam ao grupo de pessoas que fazia parte do escritório. Tupi carrega uma ironia, um questionamento, uma certa tradição e uma provocação”, define Aldo.
O caráter questionador e provocador do nome Estúdio Tupi se relaciona com a biblioteca que ocupa grande parte do seu endereço atual, na Rua Marcos Azevedo, em Pinheiros. “Tem a ver com a biblioteca, com a linguagem, com quem nós, brasileiros, somos. O que é e o que não é, ser brasileiro? ser arquiteto no brasil? O que é o que não é um objeto fruto da colonização?”, reflete o arquiteto.
As reflexões de Aldo Urbinati, carregadas de dúvidas, provocações e pensamentos relevantes, conversam com o ambiente do Estúdio Tupi, onde os livros têm papel de destaque. Ainda assim, Aldo é cuidadoso ao definir o espaço que abriga milhares de volumes. “A biblioteca do Estúdio Tupi um dia vai estar sólida, como uma biblioteca de um grupo de arquitetos que desenvolveu círculos de interesses em volta de certos autores. Por enquanto, a biblioteca é o começo de uma possível biblioteca”.
Entrevista por Kim Paiva
Entrevistado: Aldo Urbinati — Estúdio Tupi